Ontem,
revirando fotos antigas, achei as fotos das primeiras provas de longa
distância que eu participei em Porto Alegre - RS.
Por
um momento revivi as emoções das duras vitórias conseguidas à
custa de muito esforço físico.
Em
2005 eu já contava com 25 anos de diagnóstico, e acredito que tenha
sido o único ciclista portador da Doença de Parkinson, a concluir
uma prova de Audax ou Randonée, como é conhecida a modalidade
atualmente.
Este
post será dividido em 3 etapas, uma para cada prova realizada. Foram
2 de 200 quilômetros e uma de 300.
Estamos
em 2005, mais precisamente no mês de janeiro, na pequena oficina de
minha propriedade em Curitiba, no bairro Rebouças.
Foi
nessa oficina a primeira vez que ouvi falar de Audax
(http://www.audax-club-parisien.com/EN/), através
do Elídio Werka, um cliente da oficina que também participava dos
eventos de cicloturismo que eu promovia na época.
Elídio
me falou com entusiasmo da prova que aconteceria em Porto Alegre. Na
verdade tratava-se de um desafio pessoal e não de uma prova de
ciclismo nos moldes tradicionais. O desafio era percorrer a distância
de 200km no tempo máximo de 13 horas e 30 minutos.
Eu
tinha recentemente feito uma viagem entre Curitiba - PR e Piçarras -
SC, cuja distância é aproximadamente 220 quilômetros. Tinha saído
as 5 da manhã de casa e cheguei ao destino às 18h30min. Meu tempo
para esta viagem era compatível com o exigido para a prova do Audax,
porém existiam alguns detalhes que para mim eram na verdade dúvidas:
1.
Na viagem entre Curitiba e Piçarras percorri 220 quilômetros, mas
havia um facilitador - a descida da serra, onde podia descansar as
pernas por algum tempo...
2.
Não conhecia o roteiro da prova do Audax, não sabia que ritmo seria
necessário impor na bicicleta. Eu podia imaginar simplesmente
dividindo a distância a ser percorrida, pelo tempo da prova, mas
isso não significava muito. Sempre podia ocorrer um furo de pneu, ou
algum outro imprevisto que significaria uma diminuição no meu tempo
de pedalada...
3.
Os remédios que tomo seriam efetivos pelo mesmo tempo que estava
habituado a tomar? Se precisasse mais remédio, provavelmente
sofreria os efeitos do excesso, que são as discinesias.
Esse
fantasmas assombravam minha cabeça, mas como nunca fui de me
encolher para desafios, fui, aliás fomos.
Éramos
um grupo de 5 ciclistas de Curitiba. Eu, o Elídio Werka, o
Sérgio Riekes, o “seo” Manoel e o Stresser. Todos feras, eu era
a única exceção.
Na
volta da minha viagem a Piçarras, enfrentei problemas com a empresa
de ônibus que faz a linha entre Curitiba e Piçarras. O atendente me
fez pagar um extra para carregar a bicicleta no porta malas do ônibus
e acrescentou: se você tivesse a "carteirinha de ciclista",
não teria que pagar.
Carteirinha?
Que carteirinha, perguntei.
E o atendente falou:
-
Carterinha de ciclista moço. Você é ciclista e não sabe?
Paguei
a taxa e quando cheguei a Curitiba, tratei eu mesmo de fazer a minha
própria carteirinha, no meu computador. Fiz a carterinha de "atleta"
da Bike Line Brasil, minha empresa na época.
Essa
brincadeira me rendeu o não pagamento da taxa de embarque de
material esportivo no check-in do aeroporto para a viagem a Porto
Alegre. Os outros quatro companheiros de aventura tiveram que pagar a
taxa... Chegamos a Porto Alegre e fomos, após acomodar a bagagem,
fazer a inspeção do equipamento exigida pela organização da
prova.
Tudo
absolutamente novo para mim e para os meus companheiros de aventura.
Chegamos
cedo na manhã seguinte ao local da largada, o Shopping DC.
A
largada foi dada pontualmente às 6 da manhã, sob uma fina garôa. Éramos mais de 100 ciclistas tomando parte das ruas de uma sonolenta
Porto Alegre. Tentei
me manter entre os companheiros de Curitiba, mas meu ritmo de
pedalada é bem diferente. Pedalo mais compassadamente, o que
significou distanciar-me deles...
Por
volta das 7 horas precisei de uma dose de remédios. Parei e comecei
a procurar nos pequenos alforges que continham provisões para a
viagem, algumas ferramentas, remendos para pneus, etc... Não
conseguia achá-los. Assim, vi o último pelotão de ciclistas,
gradativamente se afastar de mim.
Estava
só! Estar só no começo de uma jornada de 200 km, é algo a se
considerar...
Havia
a pressão do tempo para concluir a prova, muito diferente de um
simples “passeio” de 200 km. A solidão na estrada, nos faz
pensar muito, nos faz perder ritmo e a vontade de desistir aumenta...
Enfim...
Eu estava na fogueira, o máximo que poderia acontecer era me
queimar...
Montei
na bicicleta ainda engolindo os comprimidos, abaixei a cabeça
concentrado e segui em frente. Cerca
de 30 minutos após a parada dos remédios, fui alcançado por uma
dupla de ciclistas que estavam participando também, mas tinham
chegado atrasados para a largada. Foi a minha sorte!
Começamos
a nos revezar na liderança do pequeno pelotão. Concentrados... Nem
uma palavra... Apenas o objetivo de chegar...
A
viagem começou a render. Andávamos a uma média de 25 km/h,
suficientes para que eu recuperasse o tempo perdido com os remédios.
Após
cerca de uma hora e meia rodando naquele ritmo, comecei a considerar
qual a razão, se estávamos girando os pedais num ritmo bom, porque
não alcançávamos os retardatários do último pelotão...
Tínhamos
recebido um Mapa de Rota da organização antes da largada, mas como
tudo era novidade, não me preocupei em consultá-lo e nem meus
colegas atrasados. O resultado foi que a uma certa altura, um carro
nos fez sinal para parar e de dentro dele o motorista perguntou:
-
Vocês estão participando de alguma prova?
Respondi
que sim. Novamente o motorista pergunta:
-
Para onde estão indo?
Puxei
o Mapa de Rota e vi a primeira localidade a ser alcançada onde
estaria o Posto de Controle 1. Olhei e lhe disse:
-
Charqueadas!
O
motorista riu e falou:
-
Vocês passaram da entrada para Charqueadas, faz bem uns 10 km!
No
exato momento que ele falou isso, levei um susto. Era tão lógico
ter consultado o mapa para saber a direção a seguir, mas a
ansiedade não permitiu...
O
corpo paga pelos erros da cabeça.
Meus
dois companheiros de jornada ficaram meio perdidos, sem saber o que
fazer...
Virei
a bicicleta em sentido oposto ao que estávamos indo e pedalei forte
na direção da entrada para Charqueadas. Aquele erro me custaria 20
quilômetros a mais. Os 10 de ida para a direção correta e os 10
já pedalados.
Novamente
estava só! Mas desta vez pedalando com raiva, com gana para chegar
ao PC 1.
O
erro me custou além dos 20 quilômetros a mais, um terrível
desarranjo intestinal, fruto do momentâneo desequilíbrio emocional.
Procurei
lembrar onde tinha colocado o papel higiênico na minha pequena
bagagem carregada na bicicleta, e lembrei-me que na lista de itens
não tinha previsto isso.
Cólicas
foram minhas companheiras de viagem por mais de 50 quilômetros...
Eram
quase 11 horas quando finalmente cheguei ao PC 1. Minha média
horária estava muito aquém do que precisava fazer, cerca de 10km/h,
resultado do erro cometido.
Parei
e apenas carimbei o passaporte no posto de controle. Não tive
coragem de usar o banheiro, após quase 100 ciclistas terem passado
por ali...
Montei
na bicicleta e parti em direção ao PC 2, mais 50 quilômetros de
cólicas... Precisava ainda melhorar minha média horária para poder
concluir a prova em tempo. Fiz um cálculo rápido. Era cerca de meio
dia e eu ainda tinha 150 quilômetros para percorrer. O tempo máximo
da prova se esgotava às 19h30min. Eu tinha que andar muito mais
rápido do que tinha andado até ali. Estipulei fazer uma média de
25 km/h, embora soubesse que não aguentaria pedalar nesse ritmo
pelas 7 horas e 30 minutos que me restavam de tempo. Na verdade
joguei 5km/h a mais na média que estipulei, pois sempre havia a
possibilidade de um imprevisto qualquer, além das paradas
obrigatórias nos postos de controle.
Rodei
mais 25 quilômetros a caminho do PC 2 e para minha surpresa e
desgosto vi os primeiros ciclistas do pelotão já percorrendo o
caminho de volta do PC 2. Inclusive alguns dos companheiros de
Curitiba que vieram comigo. Estes ao cruzar comigo gritaram palavras
de incentivo, que aliás vieram em boa hora!
Este
primeiro grupo, a cabeça do longo pelotão, estava cerca de 50
quilômetros à minha frente. Eu continuava vivo, firme no meu
propósito... As
subidas a poucos quilômetros do PC 2 foram duramente vencidas uma a
uma...
Cheguei
no PC 2! Antes mesmo de carimbar o passaporte, fui ao banheiro.
Àquela altura já não me importava com a quantidade de ciclistas
(quase todos) que tinham passado por ali. Precisava ir ao banheiro
para voltar a me concentrar na prova.
Quando
cheguei à porta do banheiro, encontrei-a fechada. Esperei um pouco e
após alguns minutos vi uma sorridente senhora que acabara de fazer a
limpeza do sanitário, sair com baldes e detergentes dali.
Se
eu fosse evangélico diria em alto e bom som – Oh Glória! O
banheiro estava impecavelmente limpo!
Fiz
o que tinha que fazer e fui comer algo. O tempo estava contra mim.
Tinha pouco menos de 4h30min para pedalar e concluir a prova.
Alguém
me sugeriu comer uma lasanha para repor os carboidratos. Achei uma
boa ideia e pedi uma no restaurante... Péssima ideia! A
refeição pesou no estômago e a pressão começou a baixar já nos
primeiros quilômetros em direção ao PC 3.
Sono...
Muito sono... Não conseguia fazer render a pedalada...
Parei
em um restaurante na beira da estrada e pedi uma colherzinha de sal
para colocar embaixo da língua. Em alguns minutos estava desperto
novamente.
Pedalei
com determinação para chegar ao PC 3, onde consegui chegar por
volta das 16 horas. Finalmente via um saldo positivo na jornada.
Tinha conseguido recuperar algum tempo, o que não significava que
poderia relaxar ainda. Tinha 2h30min para percorrer a última
“perna”, os 50 quilômetros finais da prova.
Entrei
na sala onde estava instalado o PC 3, em um posto de combustível. Eu
devia estar com uma aparência horrível, pois a atendente do posto
de controle ao me ver falou:
-
Você vai desistir não é? Aquelas
palavras serviram para puxar ainda mais minha gana de chegar. Olhei
para ela e disse:
-
Moça não vim de tão longe com minha bicicleta, carregando um
passageiro extra comigo, a minha doença, para me entregar assim.
Carimba esse passaporte que eu estou saindo... Quiseram
chamar um médico para ver minhas condições físicas, mas não
aceitei. Peguei o passaporte e sai como um louco pedalando.
Muitos
meses depois, no final do ano, soube de um fato muito próprio deste
tipo de desafio, onde se põe todo esforço físico possível em
busca de concluir dentro do tempo limite. O fotógrafo da prova, que
acumulava a função de “cuidar” dos últimos participantes do
pelotão, disse ao pessoal do PC após a minha saída da sala:
-
Ninguém vai tirar esse cara da prova... Se eu tiver que amanhecer
na estrada cuidando dele, vou amanhecer cuidando dele...
De
volta à estrada o cansaço começou a pegar forte... Além do erro
cometido, tinha o peso da idade, estava com 50 anos na época, havia
ainda um carona comigo, um tal parkinson que se instalou sem pedir
licença no meu corpo...
Eu
tinha esgotado tudo já naquela altura. Minhas pernas já não
respondiam, no entanto eu “precisava chegar”.
Olhando
no ciclo computador da bicicleta via, apesar do terreno plano por
onde pedalava, a velocidade baixar pouco a pouco... Nesses momentos
levantava do selim e pedalando em pé juntava o que me restava de
força concentrando tudo no pedal. Começava a embalar e o esforço
extra me fazia sentar no selim, perdendo velocidade novamente. Assim
foram nem sei quantos quilômetros...
Desci
da bike e comecei a empurrá-la chorando. O esforço... Tanto
esforço... Meu corpo cobrava o meu despropósito de tentar me
igualar a outras pessoas, muitas das quais provavelmente nem sabem o
que é Doença de Parkinson. Chorei,
gritei meu ódio de estar ali naquela estúpida tentativa de superar
a mim mesmo...
Meu
próprio grito de ódio acabou me fazendo acordar daquela letargia e
acabou me trazendo novamente à realidade. Era
eu contra mim mesmo, o que havia a temer? O cansaço? A dores no
corpo? Isso tudo já não era novidade...
Subi
na bicicleta novamente e comecei a pedalar. Afinal após mais de 10
horas sentado no selim, aquela descida para empurrar a bike tinha me
feito bem. Chorar também me fez bem. Gritar também. Então... O que
mais faltava? Pedalar para tentar chegar no tempo.
Anoiteceu
pouco depois de entrar na BR 116, a garôa foi minha
companheira...
Já
não enxergava o que o ciclo computador marcava, assim como não
conseguia enxergar as horas... Sabia
que estava próximo, mas chegaria dentro do horário? Já
não tinha certeza de nada. O coração pulava dentro do peito...
Passei
por alguns pontos de referência que criei pela manhã pensando que
poderiam ser úteis para mim no final da prova. Entre estes pontos de
referência estavam pontes sobre canais do Rio Guaíba, o rio que banha
Porto Alegre. Ao subir uma das pontes, a última no caminho de volta,
vi lá embaixo ao lado da ponte, a caminhonete da organização
parada com o giroflex ligado e o motorista do lado de fora
sinalizando com os braços, pedindo que eu parasse.
Um
redemoinho de pensamentos tomou minha cabeça... Estava tudo
acabado... Tinha corrido como um louco contra mim mesmo o dia
inteiro, tinha superado minhas dificuldades físicas, enfim estava me
sentindo um trapo em forma de ciclista. Amaldiçoei o momento em que
me meti naquele desafio.
Minhas
lágrimas começaram a se misturar com os pingos da chuva...
Fui
parando a bicicleta, triste... Todo o cansaço do dia, toda a tensão
que passei, tinha resultado nisso... Desclassificação por ter
excedido o tempo limite...
Finalmente
parei e diante do sorriso do motorista, fiquei sem saber o que falar.
Fiquei olhando para ele com o olhar perdido, pensando em tudo o que
tinha passado durante o dia todo, quando ouvi ele falar:-
Parabéns! Você concluiu a prova dentro do tempo! São 19h26 e
neste exato ponto, você está passando a marca de 200 km!
Eu
fiquei tão surpreso que não sabia o que fazia. Gritos e gritos
foram dados por mim de alegria, de dor, de satisfação por ter
superado meus limites, muito além do que imaginava poder superar.
Quando
entrei no estacionamento do Shopping DC, para completar a emoção,
ouvi meu nome ser aclamado pelo locutor do evento tendo ao fundo o
trecho Oh Fortuna, da ópera Carmina Burana, de Carl Orff.
Meus
companheiros que viajaram junto comigo de Curitiba, estavam lá após uma longa espera, para me abraçar pela conquista.
Precisei
ser literalmente “tirado” de cima da bicicleta. Minhas pernas
estavam moles, não conseguia nem ao menos respirar direito, mas
estava lá! Tinha conseguido vencer a mim mesmo. Venci a dor, o
desânimo, venci o cansaço, a solidão da estrada, venci meu erro...
Venci
a mim mesmo!