terça-feira, 15 de outubro de 2013

Audax 200km/2005

Ontem, revirando fotos antigas, achei as fotos das primeiras provas de longa distância que eu participei em Porto Alegre - RS.
Por um momento revivi as emoções das duras vitórias conseguidas à custa de muito esforço físico.

Em 2005 eu já contava com 25 anos de diagnóstico, e acredito que tenha sido o único ciclista portador da Doença de Parkinson, a concluir uma prova de Audax ou Randonée, como é conhecida a modalidade atualmente.

Este post será dividido em 3 etapas, uma para cada prova realizada. Foram 2 de 200 quilômetros e uma de 300.

Estamos em 2005, mais precisamente no mês de janeiro, na pequena oficina de minha propriedade em Curitiba, no bairro Rebouças.
Foi nessa oficina a primeira vez que ouvi falar de Audax (http://www.audax-club-parisien.com/EN/), através do Elídio Werka, um cliente da oficina que também participava dos eventos de cicloturismo que eu promovia na época.

Elídio me falou com entusiasmo da prova que aconteceria em Porto Alegre. Na verdade tratava-se de um desafio pessoal e não de uma prova de ciclismo nos moldes tradicionais. O desafio era percorrer a distância de 200km no tempo máximo de 13 horas e 30 minutos.

Eu tinha recentemente feito uma viagem entre Curitiba - PR e Piçarras - SC, cuja distância é aproximadamente 220 quilômetros. Tinha saído as 5 da manhã de casa e cheguei ao destino às 18h30min. Meu tempo para esta viagem era compatível com o exigido para a prova do Audax, porém existiam alguns detalhes que para mim eram na verdade dúvidas:

1. Na viagem entre Curitiba e Piçarras percorri 220 quilômetros, mas havia um facilitador - a descida da serra, onde podia descansar as pernas por algum tempo...

2. Não conhecia o roteiro da prova do Audax, não sabia que ritmo seria necessário impor na bicicleta. Eu podia imaginar simplesmente dividindo a distância a ser percorrida, pelo tempo da prova, mas isso não significava muito. Sempre podia ocorrer um furo de pneu, ou algum outro imprevisto que significaria uma diminuição no meu tempo de pedalada...

3. Os remédios que tomo seriam efetivos pelo mesmo tempo que estava habituado a tomar? Se precisasse mais remédio, provavelmente sofreria os efeitos do excesso, que são as discinesias.

Esse fantasmas assombravam minha cabeça, mas como nunca fui de me encolher para desafios, fui, aliás fomos. 

Éramos um grupo de 5 ciclistas de Curitiba. Eu, o Elídio Werka, o Sérgio Riekes, o “seo” Manoel e o Stresser. Todos feras, eu era a única exceção.

Na volta da minha viagem a Piçarras, enfrentei problemas com a empresa de ônibus que faz a linha entre Curitiba e Piçarras. O atendente me fez pagar um extra para carregar a bicicleta no porta malas do ônibus e acrescentou: se você tivesse a "carteirinha de ciclista", não teria que pagar.
Carteirinha? Que carteirinha, perguntei. 

E o atendente falou:

- Carterinha de ciclista moço. Você é ciclista e não sabe?
Paguei a taxa e quando cheguei a Curitiba, tratei eu mesmo de fazer a minha própria carteirinha, no meu computador. Fiz a carterinha de "atleta" da Bike Line Brasil, minha empresa na época.

Essa brincadeira me rendeu o não pagamento da taxa de embarque de material esportivo no check-in do aeroporto para a viagem a Porto Alegre. Os outros quatro companheiros de aventura tiveram que pagar a taxa... Chegamos a Porto Alegre e fomos, após acomodar a bagagem, fazer a inspeção do equipamento exigida pela organização da prova.

Tudo absolutamente novo para mim e para os meus companheiros de aventura.

Chegamos cedo na manhã seguinte ao local da largada, o Shopping DC. 

A largada foi dada pontualmente às 6 da manhã, sob uma fina garôa. Éramos mais de 100 ciclistas tomando parte das ruas de uma sonolenta Porto Alegre. Tentei me manter entre os companheiros de Curitiba, mas meu ritmo de pedalada é bem diferente. Pedalo mais compassadamente, o que significou distanciar-me deles...

Por volta das 7 horas precisei de uma dose de remédios. Parei e comecei a procurar nos pequenos alforges que continham provisões para a viagem, algumas ferramentas, remendos para pneus, etc... Não conseguia achá-los. Assim, vi o último pelotão de ciclistas, gradativamente se afastar de mim.

Estava só! Estar só no começo de uma jornada de 200 km, é algo a se considerar...



Havia a pressão do tempo para concluir a prova, muito diferente de um simples “passeio” de 200 km. A solidão na estrada, nos faz pensar muito, nos faz perder ritmo e a vontade de desistir aumenta...
Enfim... Eu estava na fogueira, o máximo que poderia acontecer era me queimar...

Montei na bicicleta ainda engolindo os comprimidos, abaixei a cabeça concentrado e segui em frente. Cerca de 30 minutos após a parada dos remédios, fui alcançado por uma dupla de ciclistas que estavam participando também, mas tinham chegado atrasados para a largada. Foi a minha sorte!

Começamos a nos revezar na liderança do pequeno pelotão. Concentrados... Nem uma palavra... Apenas o objetivo de chegar...

A viagem começou a render. Andávamos a uma média de 25 km/h, suficientes para que eu recuperasse o tempo perdido com os remédios.

Após cerca de uma hora e meia rodando naquele ritmo, comecei a considerar qual a razão, se estávamos girando os pedais num ritmo bom, porque não alcançávamos os retardatários do último pelotão...

Tínhamos recebido um Mapa de Rota da organização antes da largada, mas como tudo era novidade, não me preocupei em consultá-lo e nem meus colegas atrasados. O resultado foi que a uma certa altura, um carro nos fez sinal para parar e de dentro dele o motorista perguntou:

- Vocês estão participando de alguma prova?
Respondi que sim. Novamente o motorista pergunta:

- Para onde estão indo?
Puxei o Mapa de Rota e vi a primeira localidade a ser alcançada onde estaria o Posto de Controle 1. Olhei e lhe disse:

- Charqueadas!

O motorista riu e falou:

- Vocês passaram da entrada para Charqueadas, faz bem uns 10 km!

No exato momento que ele falou isso, levei um susto. Era tão lógico ter consultado o mapa para saber a direção a seguir, mas a ansiedade não permitiu...

O corpo paga pelos erros da cabeça.

Meus dois companheiros de jornada ficaram meio perdidos, sem saber o que fazer...

Virei a bicicleta em sentido oposto ao que estávamos indo e pedalei forte na direção da entrada para Charqueadas. Aquele erro me custaria 20 quilômetros a mais. Os 10 de ida para a direção correta e os 10 já pedalados.

Novamente estava só! Mas desta vez pedalando com raiva, com gana para chegar ao PC 1.

O erro me custou além dos 20 quilômetros a mais, um terrível desarranjo intestinal, fruto do momentâneo desequilíbrio emocional.

Procurei lembrar onde tinha colocado o papel higiênico na minha pequena bagagem carregada na bicicleta, e lembrei-me que na lista de itens não tinha previsto isso.
Cólicas foram minhas companheiras de viagem por mais de 50 quilômetros...

Eram quase 11 horas quando finalmente cheguei ao PC 1. Minha média horária estava muito aquém do que precisava fazer, cerca de 10km/h, resultado do erro cometido.

Parei e apenas carimbei o passaporte no posto de controle. Não tive coragem de usar o banheiro, após quase 100 ciclistas terem passado por ali...

Montei na bicicleta e parti em direção ao PC 2, mais 50 quilômetros de cólicas... Precisava ainda melhorar minha média horária para poder concluir a prova em tempo. Fiz um cálculo rápido. Era cerca de meio dia e eu ainda tinha 150 quilômetros para percorrer. O tempo máximo da prova se esgotava às 19h30min. Eu tinha que andar muito mais rápido do que tinha andado até ali. Estipulei fazer uma média de 25 km/h, embora soubesse que não aguentaria pedalar nesse ritmo pelas 7 horas e 30 minutos que me restavam de tempo. Na verdade joguei 5km/h a mais na média que estipulei, pois sempre havia a possibilidade de um imprevisto qualquer, além das paradas obrigatórias nos postos de controle.

Rodei mais 25 quilômetros a caminho do PC 2 e para minha surpresa e desgosto vi os primeiros ciclistas do pelotão já percorrendo o caminho de volta do PC 2. Inclusive alguns dos companheiros de Curitiba que vieram comigo. Estes ao cruzar comigo gritaram palavras de incentivo, que aliás vieram em boa hora!

Este primeiro grupo, a cabeça do longo pelotão, estava cerca de 50 quilômetros à minha frente. Eu continuava vivo, firme no meu propósito... As subidas a poucos quilômetros do PC 2 foram duramente vencidas uma a uma...

Cheguei no PC 2! Antes mesmo de carimbar o passaporte, fui ao banheiro. Àquela altura já não me importava com a quantidade de ciclistas (quase todos) que tinham passado por ali. Precisava ir ao banheiro para voltar a me concentrar na prova.
Quando cheguei à porta do banheiro, encontrei-a fechada. Esperei um pouco e após alguns minutos vi uma sorridente senhora que acabara de fazer a limpeza do sanitário, sair com baldes e detergentes dali.

Se eu fosse evangélico diria em alto e bom som – Oh Glória! O banheiro estava impecavelmente limpo!

Fiz o que tinha que fazer e fui comer algo. O tempo estava contra mim. Tinha pouco menos de 4h30min para pedalar e concluir a prova.
Alguém me sugeriu comer uma lasanha para repor os carboidratos. Achei uma boa ideia e pedi uma no restaurante... Péssima ideia! A refeição pesou no estômago e a pressão começou a baixar já nos primeiros quilômetros em direção ao PC 3.

Sono... Muito sono... Não conseguia fazer render a pedalada...
Parei em um restaurante na beira da estrada e pedi uma colherzinha de sal para colocar embaixo da língua. Em alguns minutos estava desperto novamente.

Pedalei com determinação para chegar ao PC 3, onde consegui chegar por volta das 16 horas. Finalmente via um saldo positivo na jornada. Tinha conseguido recuperar algum tempo, o que não significava que poderia relaxar ainda. Tinha 2h30min para percorrer a última “perna”, os 50 quilômetros finais da prova.

Entrei na sala onde estava instalado o PC 3, em um posto de combustível. Eu devia estar com uma aparência horrível, pois a atendente do posto de controle ao me ver falou:

- Você vai desistir não é? Aquelas palavras serviram para puxar ainda mais minha gana de chegar. Olhei para ela e disse: 

- Moça não vim de tão longe com minha bicicleta, carregando um passageiro extra comigo, a minha doença, para me entregar assim. 

Carimba esse passaporte que eu estou saindo... Quiseram chamar um médico para ver minhas condições físicas, mas não aceitei. Peguei o passaporte e sai como um louco pedalando.

Muitos meses depois, no final do ano, soube de um fato muito próprio deste tipo de desafio, onde se põe todo esforço físico possível em busca de concluir dentro do tempo limite. O fotógrafo da prova, que acumulava a função de “cuidar” dos últimos participantes do pelotão, disse ao pessoal do PC após a minha saída da sala:

- Ninguém vai tirar esse cara da prova... Se eu tiver que amanhecer na estrada cuidando dele, vou amanhecer cuidando dele...

De volta à estrada o cansaço começou a pegar forte... Além do erro cometido, tinha o peso da idade, estava com 50 anos na época, havia ainda um carona comigo, um tal parkinson que se instalou sem pedir licença no meu corpo...

Eu tinha esgotado tudo já naquela altura. Minhas pernas já não respondiam, no entanto eu “precisava chegar”.

Olhando no ciclo computador da bicicleta via, apesar do terreno plano por onde pedalava, a velocidade baixar pouco a pouco... Nesses momentos levantava do selim e pedalando em pé juntava o que me restava de força concentrando tudo no pedal. Começava a embalar e o esforço extra me fazia sentar no selim, perdendo velocidade novamente. Assim foram nem sei quantos quilômetros...

Desci da bike e comecei a empurrá-la chorando. O esforço... Tanto esforço... Meu corpo cobrava o meu despropósito de tentar me igualar a outras pessoas, muitas das quais provavelmente nem sabem o que é Doença de Parkinson. Chorei, gritei meu ódio de estar ali naquela estúpida tentativa de superar a mim mesmo...

Meu próprio grito de ódio acabou me fazendo acordar daquela letargia e acabou me trazendo novamente à realidade. Era eu contra mim mesmo, o que havia a temer? O cansaço? A dores no corpo? Isso tudo já não era novidade...

Subi na bicicleta novamente e comecei a pedalar. Afinal após mais de 10 horas sentado no selim, aquela descida para empurrar a bike tinha me feito bem. Chorar também me fez bem. Gritar também. Então... O que mais faltava? Pedalar para tentar chegar no tempo.
Anoiteceu pouco depois de entrar na BR 116, a garôa foi minha companheira...
Já não enxergava o que o ciclo computador marcava, assim como não conseguia enxergar as horas... Sabia que estava próximo, mas chegaria dentro do horário? Já não tinha certeza de nada. O coração pulava dentro do peito...

Passei por alguns pontos de referência que criei pela manhã pensando que poderiam ser úteis para mim no final da prova. Entre estes pontos de referência estavam pontes sobre canais do Rio Guaíba, o rio que banha Porto Alegre. Ao subir uma das pontes, a última no caminho de volta, vi lá embaixo ao lado da ponte, a caminhonete da organização parada com o giroflex ligado e o motorista do lado de fora sinalizando com os braços, pedindo que eu parasse.

Um redemoinho de pensamentos tomou minha cabeça... Estava tudo acabado... Tinha corrido como um louco contra mim mesmo o dia inteiro, tinha superado minhas dificuldades físicas, enfim estava me sentindo um trapo em forma de ciclista. Amaldiçoei o momento em que me meti naquele desafio.

Minhas lágrimas começaram a se misturar com os pingos da chuva...
Fui parando a bicicleta, triste... Todo o cansaço do dia, toda a tensão que passei, tinha resultado nisso... Desclassificação por ter excedido o tempo limite...

Finalmente parei e diante do sorriso do motorista, fiquei sem saber o que falar. Fiquei olhando para ele com o olhar perdido, pensando em tudo o que tinha passado durante o dia todo, quando ouvi ele falar:- Parabéns! Você concluiu a prova dentro do tempo! São 19h26 e neste exato ponto, você está passando a marca de 200 km!

Eu fiquei tão surpreso que não sabia o que fazia. Gritos e gritos foram dados por mim de alegria, de dor, de satisfação por ter superado meus limites, muito além do que imaginava poder superar.

Quando entrei no estacionamento do Shopping DC, para completar a emoção, ouvi meu nome ser aclamado pelo locutor do evento tendo ao fundo o trecho Oh Fortuna, da ópera Carmina Burana, de Carl Orff.



Meus companheiros que viajaram junto comigo de Curitiba, estavam lá após uma longa espera, para me abraçar pela conquista.



Precisei ser literalmente “tirado” de cima da bicicleta. Minhas pernas estavam moles, não conseguia nem ao menos respirar direito, mas estava lá! Tinha conseguido vencer a mim mesmo. Venci a dor, o desânimo, venci o cansaço, a solidão da estrada, venci meu erro...

Venci a mim mesmo!

2 comentários:

  1. Depois que adquirimos esse novo companheiro chamado Parkinson, temos que driblar a nós mesmo, temos que estar sempre nos superando. Há dias de desanimos, há dias melhores, assim vsmos vivendo, sempre com depoimentos como esse nos encorajam, a seguir em frente, superar os limites. Seguindo em frente dia apos dia, ruins ou bons, estamos aí na luta.

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  2. Obrigado pelo comentário Sandra! Concordo com você os altos e baixos fazem parte da nossa jornada diária e estão relacionados com a concentração de dopamina. Me alegro que o texto tenha inspirado você!

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