quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Audax 200 km - 2006

Estamos em janeiro de 2006 e o Audax não saiu da minha cabeça desde a prova de 200 km em 2005.

Converso com clientes da oficina sobre o assunto e decido tentar fazer o máximo de provas possíveis na temporada 2006. Estava decidido!

Um companheiro de pedaladas, proprietário de uma academia de condicionamento físico, se propôs a ajudar cedendo um horário três vezes por semana gratuitamente.

Esta mesma pessoa era na época professor de educação física em uma faculdade de Curitiba e estava orientando um aluno seu para fazer o trabalho de conclusão do curso. Surgiu então a ideia de juntarmos o meu desafio com a necessidade de seu aluno. Com isso, ganhei aulas de natação na faculdade sob a supervisão do aluno.

Algumas semanas depois de iniciado o treinamento, mais duas alunas do curso de nutrição, que precisavam também escrever o seu trabalho de conclusão, passaram a participar oferecendo sugestões de dieta alimentar para facilitar o treinamento.

Consegui mais alguns apoiadores para viabilizar a compra de suplementos e garantir um bom desempenho.

Treinar era uma obrigação quase diária... Ora piscina, ora academia, ora os terríveis treinos de “tiro”. O treino de “tiro” consiste em fazer, no meu caso, no velódromo de Curitiba, 5 voltas marcando o tempo de cada volta, de forma que a segunda volta fosse mais rápida que a primeira e assim sucessivamente até a quinta volta. Depois da série eu podia descansar um pouco. Voltava para casa imprestável, com as pernas moles...



O grupo de Curitiba desta vez foi maior. Éramos cerca de 10 pessoas, contando com os ciclistas e o pessoal que estava fazendo o trabalho de conclusão dos cursos. Neste grupo haviam pelo menos 4 ciclistas estreantes em provas de longa distância.



Passamos pela vistoria do equipamento, que era uma exigência do Club Audax Parisien. Estávamos todos aptos e preparados para o desafio.

Eu estava mais tranquilo dessa vez. O percurso já era conhecido desde o ano anterior, na ocasião da minha primeira prova de Audax.

Na largada o grupo de Curitiba estava coeso, porém eu sabia que era uma questão de alguns quilômetros rodados para o grupo dispersar. Isso não era nada que depusesse contra o grupo, era apenas uma questão de cada um achar seu ritmo próprio para a prova.



Quem pedala sabe que existem “dias” e “dias”. Tem dias que não vai mesmo! O pedal não rende, o cansaço derruba, o bico da garrafa de líquido não abre direito, o elástico da meia aperta o tornozelo, etc... Tudo é motivo para atrapalhar.

Nesse dia eu estava “nos cascos”. Confiante e relativamente mais experiente que meus companheiros, eu comecei poupando, pois sabia que o difícil não era o início da prova, mas o final. Estava muito bem treinado e não cometeria o erro que cometi no ano anterior. Estava assistido pelo pessoal que estava dependendo do meu resultado, para escrever seus trabalhos de conclusão de curso. Enfim estava muito bem. Apenas uma coisa me preocupava - a alimentação.

As formandas de nutrição haviam estudado com cuidado o que eu teria que ingerir durante a prova. A dieta consistia em tomar a cada 50 km, duas garrafas 750 ml com líquidos. Uma com uma mistura de 50% Coca Cola sem gás e 50% água e a outra com Glico-dry, para garantir os níveis de açúcar. O que me preocupava era o que iria comer, pois em uma prova longa se dispende muita energia e o que havia no cardápio para cada 50 km era – uma barra de proteína e um sachet de Glico-gel. Pouco? Não, absolutamente não, pois durante a prova eu ainda poderia comer intercaladamente um pacote de Club Social. Mas tinha que durar até o final da prova! Não preciso dizer que não cheguei no PC 2 com o pacote de Club Social, preciso?



O meu desempenho foi ótimo até a ponte onde a estrada faz uma curva a caminho de Charqueadas, na volta do PC 2. Ali precisamente aprendi a não usar nunca mais pneus Levorim 1.0 e de fato nunca mais usei para nada, a não ser fazer fogueira em São João.

Vinha muito bem e ao sair da ponte, tomando a curva para a esquerda, ouvi um estouro característico de pneu furado, seguido do silvo do pneu esvaziando. Parei e comecei a fazer o conserto. Preocupado com o tempo que estava perdendo, e diante da dificuldade de montar o pneu, já que estava com um pouco de discinesia, acabei tendo que montar o pneu com as espátulas e numa manobra mal feita furei a câmara que tinha acabado de montar. Tive que repetir a operação. Desmontei de novo o pneu e desta vez tive que fazer um remendo. Infelizmente a discinesia, que são movimentos involuntários da musculatura, uma característica de qualquer leve excesso de dosagem de Levodopa – o remédio para a Doença de Parkinson, me criou uma grande dificuldade para montar o pneu. Não queria mais ter que usar espátulas pelo risco de furar a câmara novamente. Assim, de tanto insistir em montar o maldito pneu Levorim 1.0 com as mãos, acabei fazendo uma enorme bolha na palma da mão direita.

Pronto! Agora sim estava encrencado! Pensava em como iria segurar o guidão da bike com a bolha já estourada e com a pele solta na palma da mão, enquanto nervosamente enchia o pneu com minha bomba.

Se você acredita na Lei de Murphy eu lhe respeito, porque eu não acreditava. Não sei como aconteceu e afirmo que nos anos de ciclismo que tenho, nunca vi acontecer o que se passou comigo. De alguma forma que não consegui entender até hoje, acabei entortando o êmbolo da bomba, aquela haste que você empurra para encher o pneu. Fiz a bandida da bomba voar no meio do mato. E agora? Tudo vinha acontecendo tão perfeitamente, a prova fluindo muito bem... Mas eu estava literalmente frito em azeite quente.

Foi então que conheci um outro lado das provas de Audax, que considero um dos pontos altos do desafio.

Vários ciclistas passaram por mim e não perceberam o tamanho do problema que eu tinha. Mas um ciclista marcou essa prova para mim, um exemplo de solidariedade, que aliás norteia os verdadeiros randonneurs. Seu nome é Helton Morais a quem devo todo respeito com ciclista e como figura humana.

Helton vinha com uma bicicleta estranha, era uma reclinada. Aparentemente feita com canos de ferro e conexões de ferro (rsrs). Coisa de gaudério mesmo!

O Helton parou e perguntou se eu precisava de alguma ajuda. Expliquei a situação toda para ele e mostrei minha mão. O Helton encostou sua bike e calmamente começou a desmontar o pneu para mim. Tentei ajudar, mas ele pediu que eu me acalmasse e sentasse no acostamento enquanto ele fazia o conserto. Esse é o espírito do Audax – o verdadeiro!

Pneu consertado e cheio. Pé na estrada, e pé na estrada com vigor! Voei baixo até chegar ao PC 3. Carimbei o passaporte e sai rumo aos últimos 50 km. Estava muito bem até então, embora sentisse muita fome.

Nesse último trecho comecei a sentir o cansaço da prova. O rendimento começou a cair, a velocidade começou a baixar e o esforço feito para recuperar o tempo perdido com o pneu furado aliado à fome que eu sentia, eram os vilões.



Atrás de mim, só tinha a van do “fecha”, a viatura usada pela organização para certificar que ninguém ficou na estrada. No trevo da BR 116, não consegui mais aguentar, parei no posto de combustível, onde tinha um pequeno boteco. Entrei olhei na estufa do boteco e vi que ali jaziam dois pastéis enjeitados pelos frequentadores do local. Perguntei do que eram e o bolicheiro disse - de carne. Mandei para dentro os dois com uma latinha de Coca Cola.

Nossa! Quando entrei na BR 116 eu voava com a bike! Um a um, fui deixando para trás todos os ciclistas que tinham passado à minha frente. Ouvindo trance no MP3 player, quanto mais corria, mais queria correr. Num instante cheguei à entrada de Porto Alegre onde o Klaus me aguardava sinalizando para parar.



Parei e ele perguntou:

Como é que você chegou aqui tão rápido? Você estava quase “morto” no trevo da BR 116!

Olhei para ele e rindo disse:
Foi o pastel do boteco no trevo! Você tem que experimentar!

Dali ao DC Shopping, a chegada da prova, foi um pulinho...



Fiz meu melhor tempo para 200 km – 10h30min!




Uma vitória imensa para quem tinha na época 26 anos de diagnóstico de Doença de Parkinson, que não teria acontecido, não fosse a inestimável ajuda do Helton Morais!

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