Estamos
em janeiro de 2006 e o Audax não saiu da minha cabeça desde a prova
de 200 km em 2005.
Converso
com clientes da oficina sobre o assunto e decido tentar fazer o
máximo de provas possíveis na temporada 2006. Estava decidido!
Um
companheiro de pedaladas, proprietário de uma academia de
condicionamento físico, se propôs a ajudar cedendo um horário três
vezes por semana gratuitamente.
Esta
mesma pessoa era na época professor de educação física em uma
faculdade de Curitiba e estava orientando um aluno seu para fazer o
trabalho de conclusão do curso. Surgiu então a ideia de juntarmos o
meu desafio com a necessidade de seu aluno. Com isso, ganhei aulas de
natação na faculdade sob a supervisão do aluno.
Algumas
semanas depois de iniciado o treinamento, mais duas alunas do curso
de nutrição, que precisavam também escrever o seu trabalho de
conclusão, passaram a participar oferecendo sugestões de dieta
alimentar para facilitar o treinamento.
Consegui
mais alguns apoiadores para viabilizar a compra de suplementos e
garantir um bom desempenho.
Treinar
era uma obrigação quase diária... Ora piscina, ora academia, ora
os terríveis treinos de “tiro”. O treino de “tiro” consiste
em fazer, no meu caso, no velódromo de Curitiba, 5 voltas marcando o
tempo de cada volta, de forma que a segunda volta fosse mais rápida
que a primeira e assim sucessivamente até a quinta volta. Depois da
série eu podia descansar um pouco. Voltava para casa imprestável,
com as pernas moles...
O
grupo de Curitiba desta vez foi maior. Éramos cerca de 10 pessoas,
contando com os ciclistas e o pessoal que estava fazendo o trabalho
de conclusão dos cursos. Neste grupo haviam pelo menos 4 ciclistas
estreantes em provas de longa distância.
Passamos
pela vistoria do equipamento, que era uma exigência do Club Audax
Parisien. Estávamos todos aptos e preparados para o desafio.
Eu
estava mais tranquilo dessa vez. O percurso já era conhecido desde o
ano anterior, na ocasião da minha primeira prova de Audax.
Na
largada o grupo de Curitiba estava coeso, porém eu sabia que era uma
questão de alguns quilômetros rodados para o grupo dispersar. Isso
não era nada que depusesse contra o grupo, era apenas uma questão
de cada um achar seu ritmo próprio para a prova.
Quem
pedala sabe que existem “dias” e “dias”. Tem dias que não
vai mesmo! O pedal não rende, o cansaço derruba, o bico da garrafa
de líquido não abre direito, o elástico da meia aperta o
tornozelo, etc... Tudo é motivo para atrapalhar.
Nesse
dia eu estava “nos cascos”. Confiante e relativamente mais
experiente que meus companheiros, eu comecei poupando, pois sabia que
o difícil não era o início da prova, mas o final. Estava muito bem
treinado e não cometeria o erro que cometi no ano anterior. Estava
assistido pelo pessoal que estava dependendo do meu resultado, para
escrever seus trabalhos de conclusão de curso. Enfim estava muito
bem. Apenas uma coisa me preocupava - a alimentação.
As
formandas de nutrição haviam estudado com cuidado o que eu teria
que ingerir durante a prova. A dieta consistia em tomar a cada 50 km,
duas garrafas 750 ml com líquidos. Uma com uma mistura de 50% Coca
Cola sem gás e 50% água e a outra com Glico-dry, para garantir os
níveis de açúcar. O que me preocupava era o que iria comer, pois
em uma prova longa se dispende muita energia e o que havia no
cardápio para cada 50 km era – uma barra de proteína e um sachet
de Glico-gel. Pouco? Não, absolutamente não, pois durante a prova
eu ainda poderia comer intercaladamente um pacote de Club Social. Mas
tinha que durar até o final da prova! Não preciso dizer que não
cheguei no PC 2 com o pacote de Club Social, preciso?
O
meu desempenho foi ótimo até a ponte onde a estrada faz uma curva a
caminho de Charqueadas, na volta do PC 2. Ali precisamente aprendi a
não usar nunca mais pneus Levorim 1.0 e de fato nunca mais usei para
nada, a não ser fazer fogueira em São João.
Vinha
muito bem e ao sair da ponte, tomando a curva para a esquerda, ouvi
um estouro característico de pneu furado, seguido do silvo do pneu
esvaziando. Parei e comecei a fazer o conserto. Preocupado com o
tempo que estava perdendo, e diante da dificuldade de montar o pneu,
já que estava com um pouco de discinesia, acabei tendo que montar o
pneu com as espátulas e numa manobra mal feita furei a câmara que
tinha acabado de montar. Tive que repetir a operação. Desmontei de
novo o pneu e desta vez tive que fazer um remendo. Infelizmente a
discinesia, que são movimentos involuntários da musculatura, uma
característica de qualquer leve excesso de dosagem de Levodopa – o
remédio para a Doença de Parkinson, me criou uma grande dificuldade
para montar o pneu. Não queria mais ter que usar espátulas pelo
risco de furar a câmara novamente. Assim, de tanto insistir em
montar o maldito pneu Levorim 1.0 com as mãos, acabei fazendo uma
enorme bolha na palma da mão direita.
Pronto!
Agora sim estava encrencado! Pensava em como iria segurar o guidão
da bike com a bolha já estourada e com a pele solta na palma da mão,
enquanto nervosamente enchia o pneu com minha bomba.
Se
você acredita na Lei de Murphy eu lhe respeito, porque eu não
acreditava. Não sei como aconteceu e afirmo que nos anos de ciclismo
que tenho, nunca vi acontecer o que se passou comigo. De alguma forma
que não consegui entender até hoje, acabei entortando o êmbolo da
bomba, aquela haste que você empurra para encher o pneu. Fiz a
bandida da bomba voar no meio do mato. E agora? Tudo vinha
acontecendo tão perfeitamente, a prova fluindo muito bem... Mas eu
estava literalmente frito em azeite quente.
Foi
então que conheci um outro lado das provas de Audax, que considero
um dos pontos altos do desafio.
Vários
ciclistas passaram por mim e não perceberam o tamanho do problema
que eu tinha. Mas um ciclista marcou essa prova para mim, um exemplo
de solidariedade, que aliás norteia os verdadeiros randonneurs. Seu
nome é Helton Morais a quem devo todo respeito com ciclista e como
figura humana.
Helton
vinha com uma bicicleta estranha, era uma reclinada. Aparentemente
feita com canos de ferro e conexões de ferro (rsrs). Coisa de
gaudério mesmo!
O
Helton parou e perguntou se eu precisava de alguma ajuda. Expliquei a
situação toda para ele e mostrei minha mão. O Helton encostou sua
bike e calmamente começou a desmontar o pneu para mim. Tentei
ajudar, mas ele pediu que eu me acalmasse e sentasse no acostamento
enquanto ele fazia o conserto. Esse é o espírito do Audax – o
verdadeiro!
Pneu
consertado e cheio. Pé na estrada, e pé na estrada com vigor! Voei
baixo até chegar ao PC 3. Carimbei o passaporte e sai rumo aos
últimos 50 km. Estava muito bem até então, embora sentisse muita
fome.
Nesse
último trecho comecei a sentir o cansaço da prova. O rendimento
começou a cair, a velocidade começou a baixar e o esforço feito
para recuperar o tempo perdido com o pneu furado aliado à fome que
eu sentia, eram os vilões.
Atrás
de mim, só tinha a van do “fecha”, a viatura usada pela
organização para certificar que ninguém ficou na estrada. No trevo
da BR 116, não consegui mais aguentar, parei no posto de
combustível, onde tinha um pequeno boteco. Entrei olhei na estufa do
boteco e vi que ali jaziam dois pastéis enjeitados pelos
frequentadores do local. Perguntei do que eram e o bolicheiro disse -
de carne. Mandei para dentro os dois com uma latinha de Coca Cola.
Nossa!
Quando entrei na BR 116 eu voava com a bike! Um a um, fui deixando
para trás todos os ciclistas que tinham passado à minha frente.
Ouvindo trance no MP3 player, quanto mais corria, mais queria correr.
Num instante cheguei à entrada de Porto Alegre onde o Klaus me
aguardava sinalizando para parar.
Parei
e ele perguntou:
Como
é que você chegou aqui tão rápido? Você estava quase “morto”
no trevo da BR 116!
Olhei
para ele e rindo disse:
Foi
o pastel do boteco no trevo! Você tem que experimentar!
Dali
ao DC Shopping, a chegada da prova, foi um pulinho...
Fiz
meu melhor tempo para 200 km – 10h30min!
Uma
vitória imensa para quem tinha na época 26 anos de diagnóstico de
Doença de Parkinson, que não teria acontecido, não fosse a
inestimável ajuda do Helton Morais!
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