segunda-feira, 21 de outubro de 2013

... e Dona Guiomar se foi ...



Chegamos de Curitiba ontem à noite. Fomos levar nosso amor ao meu querido amigo Vitor Pereira Aires. Sua companheira de vida Dona Guiomar, foi atingida por um ônibus enquanto pedalava pela Rodovia Alexandra Matinhos. O motorista do ônibus jogou pelo que se sabe, o seu veiculo sobre ela. Segundo ele mesmo, por não ter outra alternativa.

Como é possível um motorista de ônibus “ter que abalroar” um ciclista por não ter outra alternativa naquele momento? Esse motorista teria que ter, em qualquer situação uma única alternativa, preservar vidas... Preservar a vida de uma ciclista que aprendeu a pedalar, com um grande campeão do ciclismo - Vitor.

Dona Guiomar aprendeu a pedalar depois dos sessenta anos para acompanhá-lo. Eles eram inseparáveis...

Dona Guiomar se foi do nosso convívio... Deixou um enorme buraco nos nossos corações... Deixou a vida no seu melhor momento, no momento em que o amor encontrou seu eco no coração do Vitor. Juntos viajavam, pedalavam, recebiam amigos com sua simplicidade natural e com muito carinho sempre. O dois eram como se fossem um...

Encontrei duas únicas notícias completamente truncadas na internet de dois órgãos diferentes, aliás um deles simplesmente copiou a notícia truncada do outro. Não se sabe o nome do motorista, não se sabe o nome da empresa proprietária do ônibus, não se sabe se foi feito o teste de dosagem alcoólica no motorista. Afinal, nada se sabe pela notícia veiculada.

Este fato, também mostra o desrespeito com os ciclistas. Fica mais uma vez a sensação irritante provocada pelo senso comum – “quem anda de bicicleta é pobre e se é pobre pode atropelar porque não acontece nada”... Somos parte da estatística? Queremos ser? Eu não! Por isso estou escrevendo minha revolta neste artigo, para acordarmos de uma vez por todas...

Até quando esses motoristas assassinos vão ficar impunes? Até quando vamos tolerar pacificamente esse tipo de assassinato? Eu considero quem tira a vida de alguém, por não ter outra opção no momento, um assassino.

O motorista do ônibus cometeu um crime, usando sua arma – um ônibus... Poderia ser uma pistola, ou uma faca, o crime seria o mesmo – assassinato.

Até quando as autoridades do trânsito serão coniventes com estes assassinos? Coniventes sim! Para mim é conivente, quem fiscaliza o trânsito das cidades e rodovias e não tem rigor na aplicação da lei! O motorista do ônibus tirou uma vida, isso é crime! A Polícia Rodoviária Estadual o que fez? Prendeu o motorista em flagrante pelo crime cometido?

E se Dona Guiomar fosse a mãe do motorista? Será que ele não teria outra alternativa, a não ser matá-la? E se Dona Guiomar fosse a sua mãe? Você deixaria por isso mesmo? Usaria a velha e desbotada desculpa – que nada a traria de volta?


Curitiba tem hoje vários grupos de ciclistas organizados de diferentes regiões da cidade. Tem também a expressão de grupos de ciclo ativismo como a Ciclo Iguaçu e a Bicicletada. Proponho o início de um movimento imediatamente para pararmos definitivamente com esse tipo de ocorrência. Amanhã poderá ser você, ou alguém que você ama, tanto quanto Vitor amava Guiomar. O que você vai fazer a respeito?

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Audax 200 km - 2006

Estamos em janeiro de 2006 e o Audax não saiu da minha cabeça desde a prova de 200 km em 2005.

Converso com clientes da oficina sobre o assunto e decido tentar fazer o máximo de provas possíveis na temporada 2006. Estava decidido!

Um companheiro de pedaladas, proprietário de uma academia de condicionamento físico, se propôs a ajudar cedendo um horário três vezes por semana gratuitamente.

Esta mesma pessoa era na época professor de educação física em uma faculdade de Curitiba e estava orientando um aluno seu para fazer o trabalho de conclusão do curso. Surgiu então a ideia de juntarmos o meu desafio com a necessidade de seu aluno. Com isso, ganhei aulas de natação na faculdade sob a supervisão do aluno.

Algumas semanas depois de iniciado o treinamento, mais duas alunas do curso de nutrição, que precisavam também escrever o seu trabalho de conclusão, passaram a participar oferecendo sugestões de dieta alimentar para facilitar o treinamento.

Consegui mais alguns apoiadores para viabilizar a compra de suplementos e garantir um bom desempenho.

Treinar era uma obrigação quase diária... Ora piscina, ora academia, ora os terríveis treinos de “tiro”. O treino de “tiro” consiste em fazer, no meu caso, no velódromo de Curitiba, 5 voltas marcando o tempo de cada volta, de forma que a segunda volta fosse mais rápida que a primeira e assim sucessivamente até a quinta volta. Depois da série eu podia descansar um pouco. Voltava para casa imprestável, com as pernas moles...



O grupo de Curitiba desta vez foi maior. Éramos cerca de 10 pessoas, contando com os ciclistas e o pessoal que estava fazendo o trabalho de conclusão dos cursos. Neste grupo haviam pelo menos 4 ciclistas estreantes em provas de longa distância.



Passamos pela vistoria do equipamento, que era uma exigência do Club Audax Parisien. Estávamos todos aptos e preparados para o desafio.

Eu estava mais tranquilo dessa vez. O percurso já era conhecido desde o ano anterior, na ocasião da minha primeira prova de Audax.

Na largada o grupo de Curitiba estava coeso, porém eu sabia que era uma questão de alguns quilômetros rodados para o grupo dispersar. Isso não era nada que depusesse contra o grupo, era apenas uma questão de cada um achar seu ritmo próprio para a prova.



Quem pedala sabe que existem “dias” e “dias”. Tem dias que não vai mesmo! O pedal não rende, o cansaço derruba, o bico da garrafa de líquido não abre direito, o elástico da meia aperta o tornozelo, etc... Tudo é motivo para atrapalhar.

Nesse dia eu estava “nos cascos”. Confiante e relativamente mais experiente que meus companheiros, eu comecei poupando, pois sabia que o difícil não era o início da prova, mas o final. Estava muito bem treinado e não cometeria o erro que cometi no ano anterior. Estava assistido pelo pessoal que estava dependendo do meu resultado, para escrever seus trabalhos de conclusão de curso. Enfim estava muito bem. Apenas uma coisa me preocupava - a alimentação.

As formandas de nutrição haviam estudado com cuidado o que eu teria que ingerir durante a prova. A dieta consistia em tomar a cada 50 km, duas garrafas 750 ml com líquidos. Uma com uma mistura de 50% Coca Cola sem gás e 50% água e a outra com Glico-dry, para garantir os níveis de açúcar. O que me preocupava era o que iria comer, pois em uma prova longa se dispende muita energia e o que havia no cardápio para cada 50 km era – uma barra de proteína e um sachet de Glico-gel. Pouco? Não, absolutamente não, pois durante a prova eu ainda poderia comer intercaladamente um pacote de Club Social. Mas tinha que durar até o final da prova! Não preciso dizer que não cheguei no PC 2 com o pacote de Club Social, preciso?



O meu desempenho foi ótimo até a ponte onde a estrada faz uma curva a caminho de Charqueadas, na volta do PC 2. Ali precisamente aprendi a não usar nunca mais pneus Levorim 1.0 e de fato nunca mais usei para nada, a não ser fazer fogueira em São João.

Vinha muito bem e ao sair da ponte, tomando a curva para a esquerda, ouvi um estouro característico de pneu furado, seguido do silvo do pneu esvaziando. Parei e comecei a fazer o conserto. Preocupado com o tempo que estava perdendo, e diante da dificuldade de montar o pneu, já que estava com um pouco de discinesia, acabei tendo que montar o pneu com as espátulas e numa manobra mal feita furei a câmara que tinha acabado de montar. Tive que repetir a operação. Desmontei de novo o pneu e desta vez tive que fazer um remendo. Infelizmente a discinesia, que são movimentos involuntários da musculatura, uma característica de qualquer leve excesso de dosagem de Levodopa – o remédio para a Doença de Parkinson, me criou uma grande dificuldade para montar o pneu. Não queria mais ter que usar espátulas pelo risco de furar a câmara novamente. Assim, de tanto insistir em montar o maldito pneu Levorim 1.0 com as mãos, acabei fazendo uma enorme bolha na palma da mão direita.

Pronto! Agora sim estava encrencado! Pensava em como iria segurar o guidão da bike com a bolha já estourada e com a pele solta na palma da mão, enquanto nervosamente enchia o pneu com minha bomba.

Se você acredita na Lei de Murphy eu lhe respeito, porque eu não acreditava. Não sei como aconteceu e afirmo que nos anos de ciclismo que tenho, nunca vi acontecer o que se passou comigo. De alguma forma que não consegui entender até hoje, acabei entortando o êmbolo da bomba, aquela haste que você empurra para encher o pneu. Fiz a bandida da bomba voar no meio do mato. E agora? Tudo vinha acontecendo tão perfeitamente, a prova fluindo muito bem... Mas eu estava literalmente frito em azeite quente.

Foi então que conheci um outro lado das provas de Audax, que considero um dos pontos altos do desafio.

Vários ciclistas passaram por mim e não perceberam o tamanho do problema que eu tinha. Mas um ciclista marcou essa prova para mim, um exemplo de solidariedade, que aliás norteia os verdadeiros randonneurs. Seu nome é Helton Morais a quem devo todo respeito com ciclista e como figura humana.

Helton vinha com uma bicicleta estranha, era uma reclinada. Aparentemente feita com canos de ferro e conexões de ferro (rsrs). Coisa de gaudério mesmo!

O Helton parou e perguntou se eu precisava de alguma ajuda. Expliquei a situação toda para ele e mostrei minha mão. O Helton encostou sua bike e calmamente começou a desmontar o pneu para mim. Tentei ajudar, mas ele pediu que eu me acalmasse e sentasse no acostamento enquanto ele fazia o conserto. Esse é o espírito do Audax – o verdadeiro!

Pneu consertado e cheio. Pé na estrada, e pé na estrada com vigor! Voei baixo até chegar ao PC 3. Carimbei o passaporte e sai rumo aos últimos 50 km. Estava muito bem até então, embora sentisse muita fome.

Nesse último trecho comecei a sentir o cansaço da prova. O rendimento começou a cair, a velocidade começou a baixar e o esforço feito para recuperar o tempo perdido com o pneu furado aliado à fome que eu sentia, eram os vilões.



Atrás de mim, só tinha a van do “fecha”, a viatura usada pela organização para certificar que ninguém ficou na estrada. No trevo da BR 116, não consegui mais aguentar, parei no posto de combustível, onde tinha um pequeno boteco. Entrei olhei na estufa do boteco e vi que ali jaziam dois pastéis enjeitados pelos frequentadores do local. Perguntei do que eram e o bolicheiro disse - de carne. Mandei para dentro os dois com uma latinha de Coca Cola.

Nossa! Quando entrei na BR 116 eu voava com a bike! Um a um, fui deixando para trás todos os ciclistas que tinham passado à minha frente. Ouvindo trance no MP3 player, quanto mais corria, mais queria correr. Num instante cheguei à entrada de Porto Alegre onde o Klaus me aguardava sinalizando para parar.



Parei e ele perguntou:

Como é que você chegou aqui tão rápido? Você estava quase “morto” no trevo da BR 116!

Olhei para ele e rindo disse:
Foi o pastel do boteco no trevo! Você tem que experimentar!

Dali ao DC Shopping, a chegada da prova, foi um pulinho...



Fiz meu melhor tempo para 200 km – 10h30min!




Uma vitória imensa para quem tinha na época 26 anos de diagnóstico de Doença de Parkinson, que não teria acontecido, não fosse a inestimável ajuda do Helton Morais!

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Audax 200km/2005

Ontem, revirando fotos antigas, achei as fotos das primeiras provas de longa distância que eu participei em Porto Alegre - RS.
Por um momento revivi as emoções das duras vitórias conseguidas à custa de muito esforço físico.

Em 2005 eu já contava com 25 anos de diagnóstico, e acredito que tenha sido o único ciclista portador da Doença de Parkinson, a concluir uma prova de Audax ou Randonée, como é conhecida a modalidade atualmente.

Este post será dividido em 3 etapas, uma para cada prova realizada. Foram 2 de 200 quilômetros e uma de 300.

Estamos em 2005, mais precisamente no mês de janeiro, na pequena oficina de minha propriedade em Curitiba, no bairro Rebouças.
Foi nessa oficina a primeira vez que ouvi falar de Audax (http://www.audax-club-parisien.com/EN/), através do Elídio Werka, um cliente da oficina que também participava dos eventos de cicloturismo que eu promovia na época.

Elídio me falou com entusiasmo da prova que aconteceria em Porto Alegre. Na verdade tratava-se de um desafio pessoal e não de uma prova de ciclismo nos moldes tradicionais. O desafio era percorrer a distância de 200km no tempo máximo de 13 horas e 30 minutos.

Eu tinha recentemente feito uma viagem entre Curitiba - PR e Piçarras - SC, cuja distância é aproximadamente 220 quilômetros. Tinha saído as 5 da manhã de casa e cheguei ao destino às 18h30min. Meu tempo para esta viagem era compatível com o exigido para a prova do Audax, porém existiam alguns detalhes que para mim eram na verdade dúvidas:

1. Na viagem entre Curitiba e Piçarras percorri 220 quilômetros, mas havia um facilitador - a descida da serra, onde podia descansar as pernas por algum tempo...

2. Não conhecia o roteiro da prova do Audax, não sabia que ritmo seria necessário impor na bicicleta. Eu podia imaginar simplesmente dividindo a distância a ser percorrida, pelo tempo da prova, mas isso não significava muito. Sempre podia ocorrer um furo de pneu, ou algum outro imprevisto que significaria uma diminuição no meu tempo de pedalada...

3. Os remédios que tomo seriam efetivos pelo mesmo tempo que estava habituado a tomar? Se precisasse mais remédio, provavelmente sofreria os efeitos do excesso, que são as discinesias.

Esse fantasmas assombravam minha cabeça, mas como nunca fui de me encolher para desafios, fui, aliás fomos. 

Éramos um grupo de 5 ciclistas de Curitiba. Eu, o Elídio Werka, o Sérgio Riekes, o “seo” Manoel e o Stresser. Todos feras, eu era a única exceção.

Na volta da minha viagem a Piçarras, enfrentei problemas com a empresa de ônibus que faz a linha entre Curitiba e Piçarras. O atendente me fez pagar um extra para carregar a bicicleta no porta malas do ônibus e acrescentou: se você tivesse a "carteirinha de ciclista", não teria que pagar.
Carteirinha? Que carteirinha, perguntei. 

E o atendente falou:

- Carterinha de ciclista moço. Você é ciclista e não sabe?
Paguei a taxa e quando cheguei a Curitiba, tratei eu mesmo de fazer a minha própria carteirinha, no meu computador. Fiz a carterinha de "atleta" da Bike Line Brasil, minha empresa na época.

Essa brincadeira me rendeu o não pagamento da taxa de embarque de material esportivo no check-in do aeroporto para a viagem a Porto Alegre. Os outros quatro companheiros de aventura tiveram que pagar a taxa... Chegamos a Porto Alegre e fomos, após acomodar a bagagem, fazer a inspeção do equipamento exigida pela organização da prova.

Tudo absolutamente novo para mim e para os meus companheiros de aventura.

Chegamos cedo na manhã seguinte ao local da largada, o Shopping DC. 

A largada foi dada pontualmente às 6 da manhã, sob uma fina garôa. Éramos mais de 100 ciclistas tomando parte das ruas de uma sonolenta Porto Alegre. Tentei me manter entre os companheiros de Curitiba, mas meu ritmo de pedalada é bem diferente. Pedalo mais compassadamente, o que significou distanciar-me deles...

Por volta das 7 horas precisei de uma dose de remédios. Parei e comecei a procurar nos pequenos alforges que continham provisões para a viagem, algumas ferramentas, remendos para pneus, etc... Não conseguia achá-los. Assim, vi o último pelotão de ciclistas, gradativamente se afastar de mim.

Estava só! Estar só no começo de uma jornada de 200 km, é algo a se considerar...



Havia a pressão do tempo para concluir a prova, muito diferente de um simples “passeio” de 200 km. A solidão na estrada, nos faz pensar muito, nos faz perder ritmo e a vontade de desistir aumenta...
Enfim... Eu estava na fogueira, o máximo que poderia acontecer era me queimar...

Montei na bicicleta ainda engolindo os comprimidos, abaixei a cabeça concentrado e segui em frente. Cerca de 30 minutos após a parada dos remédios, fui alcançado por uma dupla de ciclistas que estavam participando também, mas tinham chegado atrasados para a largada. Foi a minha sorte!

Começamos a nos revezar na liderança do pequeno pelotão. Concentrados... Nem uma palavra... Apenas o objetivo de chegar...

A viagem começou a render. Andávamos a uma média de 25 km/h, suficientes para que eu recuperasse o tempo perdido com os remédios.

Após cerca de uma hora e meia rodando naquele ritmo, comecei a considerar qual a razão, se estávamos girando os pedais num ritmo bom, porque não alcançávamos os retardatários do último pelotão...

Tínhamos recebido um Mapa de Rota da organização antes da largada, mas como tudo era novidade, não me preocupei em consultá-lo e nem meus colegas atrasados. O resultado foi que a uma certa altura, um carro nos fez sinal para parar e de dentro dele o motorista perguntou:

- Vocês estão participando de alguma prova?
Respondi que sim. Novamente o motorista pergunta:

- Para onde estão indo?
Puxei o Mapa de Rota e vi a primeira localidade a ser alcançada onde estaria o Posto de Controle 1. Olhei e lhe disse:

- Charqueadas!

O motorista riu e falou:

- Vocês passaram da entrada para Charqueadas, faz bem uns 10 km!

No exato momento que ele falou isso, levei um susto. Era tão lógico ter consultado o mapa para saber a direção a seguir, mas a ansiedade não permitiu...

O corpo paga pelos erros da cabeça.

Meus dois companheiros de jornada ficaram meio perdidos, sem saber o que fazer...

Virei a bicicleta em sentido oposto ao que estávamos indo e pedalei forte na direção da entrada para Charqueadas. Aquele erro me custaria 20 quilômetros a mais. Os 10 de ida para a direção correta e os 10 já pedalados.

Novamente estava só! Mas desta vez pedalando com raiva, com gana para chegar ao PC 1.

O erro me custou além dos 20 quilômetros a mais, um terrível desarranjo intestinal, fruto do momentâneo desequilíbrio emocional.

Procurei lembrar onde tinha colocado o papel higiênico na minha pequena bagagem carregada na bicicleta, e lembrei-me que na lista de itens não tinha previsto isso.
Cólicas foram minhas companheiras de viagem por mais de 50 quilômetros...

Eram quase 11 horas quando finalmente cheguei ao PC 1. Minha média horária estava muito aquém do que precisava fazer, cerca de 10km/h, resultado do erro cometido.

Parei e apenas carimbei o passaporte no posto de controle. Não tive coragem de usar o banheiro, após quase 100 ciclistas terem passado por ali...

Montei na bicicleta e parti em direção ao PC 2, mais 50 quilômetros de cólicas... Precisava ainda melhorar minha média horária para poder concluir a prova em tempo. Fiz um cálculo rápido. Era cerca de meio dia e eu ainda tinha 150 quilômetros para percorrer. O tempo máximo da prova se esgotava às 19h30min. Eu tinha que andar muito mais rápido do que tinha andado até ali. Estipulei fazer uma média de 25 km/h, embora soubesse que não aguentaria pedalar nesse ritmo pelas 7 horas e 30 minutos que me restavam de tempo. Na verdade joguei 5km/h a mais na média que estipulei, pois sempre havia a possibilidade de um imprevisto qualquer, além das paradas obrigatórias nos postos de controle.

Rodei mais 25 quilômetros a caminho do PC 2 e para minha surpresa e desgosto vi os primeiros ciclistas do pelotão já percorrendo o caminho de volta do PC 2. Inclusive alguns dos companheiros de Curitiba que vieram comigo. Estes ao cruzar comigo gritaram palavras de incentivo, que aliás vieram em boa hora!

Este primeiro grupo, a cabeça do longo pelotão, estava cerca de 50 quilômetros à minha frente. Eu continuava vivo, firme no meu propósito... As subidas a poucos quilômetros do PC 2 foram duramente vencidas uma a uma...

Cheguei no PC 2! Antes mesmo de carimbar o passaporte, fui ao banheiro. Àquela altura já não me importava com a quantidade de ciclistas (quase todos) que tinham passado por ali. Precisava ir ao banheiro para voltar a me concentrar na prova.
Quando cheguei à porta do banheiro, encontrei-a fechada. Esperei um pouco e após alguns minutos vi uma sorridente senhora que acabara de fazer a limpeza do sanitário, sair com baldes e detergentes dali.

Se eu fosse evangélico diria em alto e bom som – Oh Glória! O banheiro estava impecavelmente limpo!

Fiz o que tinha que fazer e fui comer algo. O tempo estava contra mim. Tinha pouco menos de 4h30min para pedalar e concluir a prova.
Alguém me sugeriu comer uma lasanha para repor os carboidratos. Achei uma boa ideia e pedi uma no restaurante... Péssima ideia! A refeição pesou no estômago e a pressão começou a baixar já nos primeiros quilômetros em direção ao PC 3.

Sono... Muito sono... Não conseguia fazer render a pedalada...
Parei em um restaurante na beira da estrada e pedi uma colherzinha de sal para colocar embaixo da língua. Em alguns minutos estava desperto novamente.

Pedalei com determinação para chegar ao PC 3, onde consegui chegar por volta das 16 horas. Finalmente via um saldo positivo na jornada. Tinha conseguido recuperar algum tempo, o que não significava que poderia relaxar ainda. Tinha 2h30min para percorrer a última “perna”, os 50 quilômetros finais da prova.

Entrei na sala onde estava instalado o PC 3, em um posto de combustível. Eu devia estar com uma aparência horrível, pois a atendente do posto de controle ao me ver falou:

- Você vai desistir não é? Aquelas palavras serviram para puxar ainda mais minha gana de chegar. Olhei para ela e disse: 

- Moça não vim de tão longe com minha bicicleta, carregando um passageiro extra comigo, a minha doença, para me entregar assim. 

Carimba esse passaporte que eu estou saindo... Quiseram chamar um médico para ver minhas condições físicas, mas não aceitei. Peguei o passaporte e sai como um louco pedalando.

Muitos meses depois, no final do ano, soube de um fato muito próprio deste tipo de desafio, onde se põe todo esforço físico possível em busca de concluir dentro do tempo limite. O fotógrafo da prova, que acumulava a função de “cuidar” dos últimos participantes do pelotão, disse ao pessoal do PC após a minha saída da sala:

- Ninguém vai tirar esse cara da prova... Se eu tiver que amanhecer na estrada cuidando dele, vou amanhecer cuidando dele...

De volta à estrada o cansaço começou a pegar forte... Além do erro cometido, tinha o peso da idade, estava com 50 anos na época, havia ainda um carona comigo, um tal parkinson que se instalou sem pedir licença no meu corpo...

Eu tinha esgotado tudo já naquela altura. Minhas pernas já não respondiam, no entanto eu “precisava chegar”.

Olhando no ciclo computador da bicicleta via, apesar do terreno plano por onde pedalava, a velocidade baixar pouco a pouco... Nesses momentos levantava do selim e pedalando em pé juntava o que me restava de força concentrando tudo no pedal. Começava a embalar e o esforço extra me fazia sentar no selim, perdendo velocidade novamente. Assim foram nem sei quantos quilômetros...

Desci da bike e comecei a empurrá-la chorando. O esforço... Tanto esforço... Meu corpo cobrava o meu despropósito de tentar me igualar a outras pessoas, muitas das quais provavelmente nem sabem o que é Doença de Parkinson. Chorei, gritei meu ódio de estar ali naquela estúpida tentativa de superar a mim mesmo...

Meu próprio grito de ódio acabou me fazendo acordar daquela letargia e acabou me trazendo novamente à realidade. Era eu contra mim mesmo, o que havia a temer? O cansaço? A dores no corpo? Isso tudo já não era novidade...

Subi na bicicleta novamente e comecei a pedalar. Afinal após mais de 10 horas sentado no selim, aquela descida para empurrar a bike tinha me feito bem. Chorar também me fez bem. Gritar também. Então... O que mais faltava? Pedalar para tentar chegar no tempo.
Anoiteceu pouco depois de entrar na BR 116, a garôa foi minha companheira...
Já não enxergava o que o ciclo computador marcava, assim como não conseguia enxergar as horas... Sabia que estava próximo, mas chegaria dentro do horário? Já não tinha certeza de nada. O coração pulava dentro do peito...

Passei por alguns pontos de referência que criei pela manhã pensando que poderiam ser úteis para mim no final da prova. Entre estes pontos de referência estavam pontes sobre canais do Rio Guaíba, o rio que banha Porto Alegre. Ao subir uma das pontes, a última no caminho de volta, vi lá embaixo ao lado da ponte, a caminhonete da organização parada com o giroflex ligado e o motorista do lado de fora sinalizando com os braços, pedindo que eu parasse.

Um redemoinho de pensamentos tomou minha cabeça... Estava tudo acabado... Tinha corrido como um louco contra mim mesmo o dia inteiro, tinha superado minhas dificuldades físicas, enfim estava me sentindo um trapo em forma de ciclista. Amaldiçoei o momento em que me meti naquele desafio.

Minhas lágrimas começaram a se misturar com os pingos da chuva...
Fui parando a bicicleta, triste... Todo o cansaço do dia, toda a tensão que passei, tinha resultado nisso... Desclassificação por ter excedido o tempo limite...

Finalmente parei e diante do sorriso do motorista, fiquei sem saber o que falar. Fiquei olhando para ele com o olhar perdido, pensando em tudo o que tinha passado durante o dia todo, quando ouvi ele falar:- Parabéns! Você concluiu a prova dentro do tempo! São 19h26 e neste exato ponto, você está passando a marca de 200 km!

Eu fiquei tão surpreso que não sabia o que fazia. Gritos e gritos foram dados por mim de alegria, de dor, de satisfação por ter superado meus limites, muito além do que imaginava poder superar.

Quando entrei no estacionamento do Shopping DC, para completar a emoção, ouvi meu nome ser aclamado pelo locutor do evento tendo ao fundo o trecho Oh Fortuna, da ópera Carmina Burana, de Carl Orff.



Meus companheiros que viajaram junto comigo de Curitiba, estavam lá após uma longa espera, para me abraçar pela conquista.



Precisei ser literalmente “tirado” de cima da bicicleta. Minhas pernas estavam moles, não conseguia nem ao menos respirar direito, mas estava lá! Tinha conseguido vencer a mim mesmo. Venci a dor, o desânimo, venci o cansaço, a solidão da estrada, venci meu erro...

Venci a mim mesmo!

terça-feira, 4 de junho de 2013

Medo...

Tudo ficou mais lento... Os passos, as reações, mas as emoções aceleraram...

A sensação de estar caminhando trôpego, acompanhada de outra sensação – a de ser diferente, ou melhor a sensação de “estar diferente” foi corroendo a auto estima. 

Me recordo de sentir muita vergonha deste novo estado de ser. Andava de cabeça baixa, devagar como os idosos andam. Pessoas olhavam para mim nas ruas, com uma curiosidade desconfortável...

Eu mesmo não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que alguma coisa não estava bem com minha saúde. Medo, muito medo...

Aos quatorze ou quinze anos de idade, meu pai disse um dia bravo para mim, chamando minha atenção - “levanta esses pés do chão para andar rapaz, você parece um velho andando”.

Ninguém, nem eu mesmo percebia, mas um novo “companheiro” estava, já naquela época, instalado. Quase imperceptível, sorrateiramente ele vinha minando aos poucos meu corpo. Tirando devagarzinho minha agilidade, solapando meu bem estar, como um rio que devora as suas próprias margens.

Medo... Muito medo...

Um fato marcou e foi a constatação definitiva. Um pulo na piscina do clube, no poço dos trampolins. Quatro metros de profundidade. Eu nadava muito bem, sempre nadei, desde menino na praia. Naquele dia não! A água da piscina me engolia, alguma força estranha segurava meus braços e minhas pernas. Não podia flutuar. Pânico, não. Terror! De dentro do terror, pedi socorro ao guarda vidas do clube. Alguns amigos pensavam que eu estava brincando e riam, pois sabiam que eu nadava bem. Desespero! O guarda vidas finalmente me tirou de lá. O fôlego faltava, o corpo tremia, estava exausto...

Medo... Muito...

Consultar um médico.. Era preciso... Medo de ouvir o inevitável – minha saúde aos 25 anos, não era a mesma. Pior... era neurológico... Descartas todas as outras possibilidades - vida sedentária, falta de exercício, estresse emocional, “tive que” procurar um médico.

Medo... Ainda mais... Exames, muitos exames... E a nova realidade caiu na minha cabeça me atordoando.

Você sabe o que é Doença de Parkinson? Peguntou o médico.
Não. Nunca ouvi falar. Disse eu.
Os exames que pedi não revelaram nada errado. Descartei todas as outras possibilidades. Você está com a Doença de Parkinson. Não procure ler a respeito. Vá levando sua vida como tem levado, a diferença é que terá que tomar remédios pelo resto da sua vida. É uma doença ainda sem cura, é degenerativa, é também progressiva, embora o progresso seja lento, mas existe tratamento. Sentenciou o médico.

Medo e lágrimas... Muitas lágrimas no caminho de volta para casa...

Passaram trinta e três anos daquele dia...

Passaram mais de quarenta e dois anos do dia em que ouvi do meu pai que parecia um velho andando...

Estou aqui! Agora acostumado...

O medo se foi, as lágrimas secaram...

A vida continuou pela sede de viver...

Bom dia!

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Porque não ser diferente?

E porque não... ser diferente?

Quando eu era criança, com cerca de 9 anos, geralmente íamos passar as férias em uma pequena cidade do interior paulista, onde moravam meus avós. Era a oportunidade anual de rever os primos, os tios e os avós. 

Minha mãe ficava sempre na casa dos avós, e eu ficava circulando com minha mochilinha de roupas e coisas de uso pessoal, entre a casa dos primos.

Para ir da casa dos avós até a casa de uma das primas, eu tinha que seguir sempre em frente por uma rua que se chamava “Rua Boiadeira”. O nome da rua não foi dado ao acaso. Recebeu este nome porque era por ali que passavam as boiadas que muitas vezes vinham de outras cidades e se dirigiam ao matadouro municipal.

O meu receio era encontrar com uma dessas boiadas passando enquanto eu fazia o trajeto.

Um dia aconteceu. Eu já estava próximo da casa da prima e um dos bois se desgarrou, tentando fugir do rebanho. Não me lembro ao certo como era esse boi, mas para mim era muito grande e ameaçador. Vinha em disparada na direção que eu ia seguindo. Subi em um muro alto, o mais rápido que pude e o boi passou por onde eu estava correndo para a sua liberdade seguido por dois boiadeiros a cavalo. O que aconteceu depois com o boi eu não sei. Mas esse fato marcou para mim, não pela fuga em si, mas pelo fato de todo o rebanho seguir a passo lento para o matadouro, enquanto aquele boi em especial decidiu por si mesmo que todos os outros do rebanho estavam errados e seguiu sua vontade.

Nós que temos a Doença de Parkinson sabemos que a nossa tendência é nos recolher dentro de nós mesmos, como uma espécie de de proteção, ou fuga … A pergunta que faço é:

Porque tem que ser assim da forma que a doença nos induz a ser?

Em outro artigo publicado antes de ontem, escrevi sobre a diferença entre aceitação e resignação.

Resignação é aceitar sem outra possibilidade... É saber que está sendo conduzido para o matadouro e não fazer, nem ao menos tentar lutar pela vida...

Por que não ser diferente?

terça-feira, 19 de março de 2013

O Outono

Os primeiros sinais de mais um verão partindo para o hemisfério norte já estão aparecendo. Os pássaros já não fazem o costumeiro barulho matinal e o frio já deu suas caras por aqui.

Mais um verão se foi, dos muitos já vividos...

Sinto também o outono chegar em minha vida... Um tempo de observação do que já vivi... Tempo de despertar o espírito e degustar a experiência recolhida na caminhada empreendida.

Entre altos e baixos a vida me foi gentil e amiga. Percebo isso quando vejo o que vivi e a maneira como vivi minha vida... Ousei, arrisquei e algumas vezes fui muito próximo do limite...

Mas o que é viver?

Viver é pegar um cobertor numa noite fria e sentar lá fora, no quintal, de preferência com a sua companheira ou companheiro e ficar sentindo o friozinho da noite enrolado no cobertor sentindo o calorzinho do momento. Para que? Por nada além do prazer de estar ali naquele momento olhando o céu e sentindo os cheiros da noite.

Viver é cuidar de uma árvore que você plantou e esperar pacientemente que ela cresça. É imaginar como você espera vê-la daqui a dez ou vinte anos e projetar na sua mente como você estará quando ela atingir o estado que você imaginou.

Viver é ainda perceber que apesar do outono chegando, haverá alguns meses adiante um novo verão e os pássaros voltarão a fazer o barulho matinal.

Viver é abraçar as pessoas que você ama sem receios, sem pensar no que elas vão pensar...

Viver é abrir o coração e o sorriso num bom dia sincero a quem cruza seu caminho embora você nunca o tenha visto na vida.

Viver é aceitar você como você é, como você se construiu e construiu sua vida. Sem culpa, sem nenhuma vergonha de ter ou não ter feito coisas que devia ou não devia... Fazemos sempre o melhor dentro do que conhecemos, dentro da nossa vivência pela caminhada da vida...

Viver é acima de qualquer outra possibilidade amar sem limites, sem medo de se machucar, porque essa é a única maneira efetiva de ser feliz.

Bom dia

quinta-feira, 14 de março de 2013

Cheirinho de pizza no ar


O juiz da 1ªVara do Júri de São Paulo, Alberto Anderson Filho, entendeu que o estudante Alex Siwek, de 21 anos, que atropelou o ciclista David Santos Souza, não deve responder por tentativa de homicídio, mas sim por lesão corporal.
Para a Justiça, não cabe análise por crime intencional (doloso), como pretendia a polícia e o Ministério Público, mas por ação culposa. Na prática, se mantida a decisão, isso significa que o réu deve responder ao crime em liberdade e, mesmo se for condenado, pegará uma pena menor.
(fonte R7)
Sim claro! O pobre Alex Siwek, coitado, não teve culpa de ter tido vontade de fazer uma  prova particular de "slalon" entre os cones que separam a ciclovia da Paulista dos carros. Afinal ele estava voltando da balada bêbado, conforme ratificou o comparsa que o acompanhava, que na minha modesta opinião merece o "Troféu Dedão", pois afirmou que os dois tinham bebido na balada, sem a  menor cerimônia. O estranho é que o nível etílico do candidato a assassino desapareceu como num passe de mágica, pois o resultado do exame clínico do nosso pobre Alex deu negativo.
Qual seu sabor preferido? A minha à portuguesa por favor! Ah! Massa fina se possível!
O braço? Ah o braço... O que fazer com um braço já sem vida? O nosso pobre Alex Siwek possivelmente não terá seu braço amputado por um bêbado baladeiro, portanto nunca saberá o quanto isso atrapalha. 
O braço? Ah sei lá! Já não está morto mesmo? O Alex logicamente não iria deixar aquela coisa morta emporcalhando seu carro de sangue. Mais uma vez agiu certo, jogando o braço no córrego. Quando fez isso, pensou na natureza, nos animaizinhos que vivem no córrego e não têm o que comer. Afinal o braço já não ia servir para o ciclista...
Hm a de quatro queijos está ótima!
Alex Siwek, você é um moleque irresponsável, porém a culpa não é sua. A culpa é de quem quem o fez irresponsável e está bancando financeiramente mais uma putaria para isentar você de culpa.
Tenho vergonha, muita vergonha de falar sobre esse tipo de  assunto com algumas pessoas com quem tenho contato no exterior. Deveríamos todos nós brasileiros ter vergonha na cara! Deveríamos não achar "que tudo acaba sempre em pizza" como e fosse o normal acabar em pizza. Somos roubados diariamente e aplaudimos... Nos injuriamos com a canalhice, mas não fazemos nada!
Imagine seu filho com um braço amputado pelo pára-brisas de um carro dirigido por um irresponsável bêbado. Você ficaria quieto?

terça-feira, 12 de março de 2013

A professorinha

Abri minha oficina de bicicletas pronto para mais um dia de trabalho. Macacão e o cheiro da oficina... Trabalho! Bicicletas para desmontar e montar, consertar e pintar criando a possibilidade de gente voltar a pedalar...

Ela veio arrastando uma perna, com o braço esquerdo encolhido e a coluna meio torta para manter o equilíbrio. Tinha um jeito de andar muito característico, a marcha própria de alguém que tem algum problema neurológico. Na verdade me disse qual era, mas já não me lembro mais, tantos anos se passaram...

Contou uma história de superação... Contou que nunca se casara e que tinha se formado professora apesar de toda dificuldade de locomoção. Contou do preconceito das pessoas... Contou um dos seus sonhos... Pedalar uma bicicleta...  

Aquela frase - "moço, meu sonho é pedalar em uma bicicleta", me tomou o coração inteiro...

Não podia imaginar como aquele corpo, com aquela marcha tão diferente poderia se manter equilibrada sobre uma bicicleta.

A solução para isso ela mesma já tinha encontrado. Pesquisando na internet, ela descobriu um fabricante de triciclos em São Paulo. Bicicletas especiais para desabilitados. Mesmo assim, suas necessidades iam além do que o triciclo podia oferecer. O triciclo oferecia a solução para o equilíbrio em duas rodas, mas não para o seu braço esquerdo tolhido pela lesão cerebral.

Prometi a ela que iria achar uma solução e que ela iria realizar seu sonho. Um novo desafio pela frente me movia. Como fazer uma bicicleta segura e eficiente para aquela professorinha pedalar...

Entrei no site do fabricante vi as especificações do triciclo e encomendei um para trabalhar no sonho daquela pessoa que se revelou tão especial.

Trabalhamos como pudemos com os recursos que tínhamos eu e o Luan, que  me auxiliava na oficina. Sobrava um tempinho e lá íamos nos trabalhar no triciclo. Parecia um triciclo normal à  primeira vista, mas um olho um pouco mais atento iria de cara observar na dianteira da bicicleta pinças de freio duplas, na frente e atrás do garfo, com um comando único de frenagem para a mão direita. Essa foi uma das adaptações que fizemos.

Qualquer esforço é válido quando o objetivo é nobre... Tivemos recompensados a nossa dedicação quando vimos da porta da oficina ela alegre, como uma criança que acaba de ganhar um presente, pedalando seu sonho.

Apareceu no outro dia para agradecer.

E foi embora pedalando o seu sonho...

quinta-feira, 7 de março de 2013

Histórias...

Cada um tem a sua história particular e própria. Eu tenho a minha. Uma  história da qual me orgulho. Tornei-me um nome respeitado no meio de ciclismo em Curitiba, tive filhos, escrevi um livro e construí com meu amor, a nossa casa.

Material? Zero, nada, nadica de nada. Não tenho nada material pois nada consegui guardar nessa vida. O que consegui acumular foi quilometragem de vida, experiência adquirida em intermináveis altos e baixos, que felizmente reverteram numa esplêndida vida vivida. Nunca me acovardei diante de um desafio, aliás sou movido ainda hoje a desafios...

Desafio o Parkinson diariamente. Uma luta desigual, uma luta química, uma luta que não dá para lutar com as mãos. Luto com efeitos colaterais, mudanças de humor, luto com a tendencia a estar deprimido.  Parece trágico? Eu diria desconfortável... Nunca trágico...

A vida tem ensinado muito. O Parkinson tem ensinado muito...

Se você encontra uma grande dificuldade para superar na sua vida, a sua recompensa virá com força inversamente proporcional ao seu esforço de superação. Procuro sempre entender o que existe por trás de toda situação difícil. Sempre tem um ensinamento escondido. Sempre tem um segredo revelado.

Essa é a minha bagagem e meu maior patrimônio. Esse patrimônio não se perde, não se consegue roubar, não se aprende na escola, nem se compra.

Encaro a vida de frente, de peito aberto, sem medo...

nem mesmo de ser feliz...

segunda-feira, 4 de março de 2013

Brilho

Olá, meu nome é Entacapona, mas sou também conhecido por Comtan. Sou um medicamento que otimiza o efeito de um outro remédio para quem sofre da Doença de Parkinson.

Sei que muitos precisam de mim. Mas sabe, sem querer ser estrela, vou confessar que cansei de ter minha embalagem segurada por mãos tremulas. Cansei de ser posto na boca de gente que baba. Cansei de ser xingado quando ao tentarem me tirar da embalagem, por descuido de um treme treme qualquer caio, no chão.

Isso é um desabafo! Cansei!

Vou procurar uma promoção no Laboratório Novartis, que é meu fabricante. Pensei tipo assim, em tentar ser remédio para AIDS, que dá muito mais mídia, ou quem sabe uma outra doença qualquer... Mas que seja importante, não essa merda de parkinson.

Aliás, você sabe o que é Doença de Parkinson? 

Tá vendo? Como posso ser um medicamento de sucesso se  ninguém sabe o que é a doença que eu ajudo a tratar? Além do mais, ajudar a tratar é como ser vice alguma coisa. Vice prefeito, vice diretor... Ninguém sabe quem é...

Ah não! Não nasci para isso...

Vamos lá, segunda chance... Quem é o cara que dá o nome à doença, esse tal de Parkinson? Vamos lá sabichão, diga aí! Não vale correr pra wikipédia!

Tá vendo? Ele é um ilustre desconhecido... Eu não!

Cansei mesmo!

Não nasci pra ser nenhuma merda de vice...

Todo mundo busca crescer, porque é que eu não posso também?

Olha vou te contar uma coisa e espero que você me entenda - não frequento mais farmácias! Não adianta pedir pra eu voltar. Principalmente aquelas farmácias do governo, as que dão remédio pra aquela gente rude, aquele povo sem educação, sem estirpe. Eu hein????

Quero meu lugar ao sol. 

Quero brilho, não tremedeira!

Desculpe o desabafo e obrigado, já estou me sentindo melhor....

sábado, 2 de março de 2013

Maturidade

Até que um dia, você se torna mais maduro e pensa:

Nas palavras que deixou de dizer...
No abraço apertado de saudade...
Nas atitudes que teve...
No que falou e não foi ouvido...
Na esperança de construir...
Na decepção de ter destruído...
Na fé que tem nos homens...
Na sua concepção de Deus...
Na sua crença que mundo poderia ser mais justo...
Nas pessoas que não tem um teto...
Em quem não come a alguns dias...
Em quem não tem o que vestir...
Em quem não ouve uma palavra amiga...
Em quem é absolutamente só...
Em quem perdeu a fé na vida...
Em quem sofre as dores de não ser amado...

Então a maturidade se opõe à inexperiência dos anos...

Você começa a enxergar as coisas boas que arrecadou ao longo de anos vivendo... A serenidade de olhar "por cima da paisagem", não tem preço, não tem como aprender na escola... Custa muito caro... Os calos e as feridas que a vida vai deixando ensinam...
A perdoar e ser humilde o bastante aceitar o perdão...
A aceitar suas imperfeições...
A não cobrar pelas imperfeições do outros...
A ser paciente mesmo quando os outros não são...
A ver o sol nascer e entender que o sol nasce todos os dias,
não importa se você estará aqui ou não para vê-lo...

O tempo é o Mestre...

Tudo está no seu olhar...

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Maconha

Quando ouvia falar de maconha na minha adolescência e infância, o tom da conversa soava grave, criando a imagem de que os usuários de maconha, os maconheiros, eram bandidos, estupradores, que faziam uso da maconha para fazer arruaças. Enfim era coisa de gente de baixo nível.

O tempo passou e essa imagem ficou na minha cabeça, assim como deve ter ficado na cabeça de quem me lê nesse momento.

Vamos fazer um exercício de imaginação e criar na nossa tela mental uma cena na Jamaica, onde a cultura predominante é Rastafari. Os rastafari acreditam em um Deus redentor de suas almas. O nome desse Deus é "Jah", provavelmente derivado de Javé. O que diferencia o rastafari do resto do mundo visualmente é o uso de "dreadlocks" uma espécie de amarração que se faz nos cabelos enrolados. O que diferencia os rastafari do resto do mundo também, é sua música, o reggae. O reggae é uma música com fortes mensagens de paz e fraternidade. Outra diferença básica dos rastafari e boa parte do mundo é a alimentação natural, sem química. A meditação para um contato mais íntimo com Jah, é uma  prática diária. A  meditação é sempre atingida em seu estado pleno pelo uso da maconha. Por isso a associação entre reggae e  maconha é forte. 

Voltando ao nosso exercício de imaginação, vamos provocar nossa mente a imaginar uma criança filha de uma família rastafari, que vê seus pais meditarem diariamente usando a maconha, essa criança testemunha no dia a dia uma convivência pacífica dentro dos preceitos rastafari de paz e fraternidade. Qual será a imagem que essa criança terá por toda sua vida, da maconha?

É fácil deduzir que tudo passa pelos olhos de quem observa.

Assunto polêmico mas importante, que deve ser tratado isento de preconceitos é o uso da maconha como coadjuvante no tratamento da Doença de Parkinson.

Vou falar da minha experiência pessoal, o que não representa absolutamente nenhuma apologia ao uso de maconha ou qualquer outra droga. Acho delicado falar disso, mas ainda assim necessário.

Fiz algumas experiências com uso da maconha em diversas situações durante a minha convivência com a doença, Sem dúvidas a pior delas foi quando após ter fumado precisei tomar remédios. Em alguns minutos tive uma sensação terrível de medo e enjoo, um mal estar que durou algumas horas. Aprendi que não se deve associar com os remédios!

Todas as outras experiências foram positivas. Posso citar a redução de discinesias, relaxamento do corpo, aumento da libido e também outras sensações clássicas provocadas pela maconha como o aumento da capacidade de percepção dos sentidos físicos e também dos psíquicos.

Eu reservo essas experiências para momentos de quietude, de recolhimento e para momentos que não precise dirigir ou que precise de concentração.

Está aberta a discussão! Aguardo os comentários.

Bom dia